tomado de http://www.livrariaexotica.com.br/malditaguerra.htm
MALDITA GUERRA - Nova história da Guerra do
Paraguai
Francisco Doratioto
Trecho do Livro
Introdução
Entre 1740 e 1974, o planeta teve 13 bilhões de habitantes e assistiu a
366 guerras de grande dimensão, ao custo de 85 milhões de mortos. O resultado
dessas guerras parece ter sido um prêmio à agressão, pois em dois terços delas o
agressor saiu-se vencedor e, quanto à duração, 67% terminaram em prazo inferior
a quatros anos. A Guerra do Paraguai faz parte, portanto, da minoria, pois o
agressor, o lado paraguaio, foi derrotado e a luta se estendeu por cinco anos.
Foi o conflito externo de maior repercussão para os países envolvidos, quer
quanto à mobilização e perda de homens, quer quanto aos aspectos políticos e
financeiros. O enfrentamento entre a Tríplice Aliança e o Paraguai tornou-se
verdadeiro divisor na história das sociedades desses países, como o demonstra,
em relação ao Brasil, o seguinte trecho da crônica de Machado de Assis, escrita
em 1894:
Deus meu! Há pessoas que nasceram
depois da Guerra do Paraguai! Há rapazes que fazem a barba, que namoram, que se
casam, que têm filhos e, não obstante, nasceram depois da batalha de Aquidaban.
A longa duração da guerra, que perdurou de dezembro de 1864 a março de 1870,
criou uma nova realidade, uma "vida intensa", no Rio de Janeiro. Na capital do
Império do Brasil, soldados entravam e saíam e, numa época em que não existia o
telégrafo internacional, esperava-se a chegada de navios vindos do Rio da Prata
com notícias da frente de batalha. O cotidiano se alterou nas outras duas
capitais aliadas, Buenos Aires e Montevidéu, por onde passavam tropas
brasileiras enviadas ao Paraguai e doentes evacuados da frente de batalha. Na
Argentina, sobretudo, onde se abasteciam o Exército e a Marinha imperial, a
economia foi dinamizada, e enriqueceu fazendeiros e comerciantes. A Guerra do
Paraguai repercutiu na consolidação dos Estados nacionais argentino e uruguaio;
foi o momento do apogeu da força militar e da capacidade diplomática do Império
do Brasil, mas, de forma paradoxal, contribuiu para o acirramento de
contradições do Estado monárquico brasileiro, enfraquecendo-o. O Paraguai, por
sua vez, tornou-se a periferia da periferia, na medida em que sua economia se
tornou satélite da economia da Argentina após o término do conflito.
A evolução da guerra despertou a minha atenção quando, na segunda metade
da década de 1980, pesquisava para a dissertação de mestrado sobre as relações
entre o Império do Brasil e o Paraguai. Deparei-me com seguidas surpresas em
arquivos dos países envolvidos na guerra; em informes de diplomatas europeus que
serviam na região; em livros de memórias; em trabalhos do final do século XIX e
início do XX, bem como em estudos paraguaios mais recentes. Ficou claro que,
desde o final da guerra, em 1870, a historiografia tradicional brasileira
reduziu a importância do aliado argentino para a vitória sobre Solano López e
minimizou, quando não esqueceu, importantes críticas à atuação de chefes
militares brasileiros no conflito.Em compensação, ficou evidente que Francisco
Solano López era um ditador quase caricato de um país agrícola atrasado, autor
de erros militares que custaram a vida de milhares de seus valentes soldados,
mas que foram motivo de suspeito silêncio de seus admiradores futuros, os
revisionistas históricos. Nas últimas décadas do século xx, a história da guerra
foi "retrabalhada" pelo revisionismo populista, ao se criar o mito de Solano
López grande chefe militar e, absurdamente, líder antiimperialista. Ao mesmo
tempo, desqualificava-se a atuação dos Exércitos aliados, a resistência e o
sacrifício demonstrados por seus homens, lutando durante anos longe de seus
países. Na verdade, atos de desprendimento pessoal, de bravura, de covardia ou
de crueldade ocorreram em ambos os lados da guerra.
A geração daqueles que lutaram na
guerra, quer nos países aliados, quer no Paraguai, não registrava de forma
positiva o papel histórico de Solano López. Havia certeza da sua
responsabilidade, quer no desencadear da guerra, ao invadir o Mato Grosso, quer
na destruição de seu país, pelos erros na condução das operações militares e na
decisão de sacrificar os paraguaios, mesmo quando caracterizada a derrota, em
lugar de pôr fim ao conflito. Dessa geração nasceu a historiografia tradicional
sobre a guerra, que simplificou a explicação do conflito ao ater-se às
características pessoais de Solano López, classificado como ambicioso, tirânico
e, mesmo, quase desequilibrado. Essa caracterização não estava longe da
realidade e pode até explicar certos momentos da guerra, mas não sua origem e
sua dinâmica.
No final do século XIX e início do XX surgiram vozes discordantes dessa
interpretação tradicional. No Brasil, os adeptos do positivismo, filosofia
contrária ao regime monárquico de governo, passaram a responsabilizar o Império
brasileiro pelo início da guerra. No Paraguai, por essa época, surgiu o
revisionismo sobre Solano López, que teve sua imagem "reconstruída" e passou a
ser apresentado como estadista e grande chefe militar. Essa interpretação surgiu
por motivos financeiros, como é desvendado no capítulo 1 deste livro, e foi
adotada por uma seqüência de ditadores: Rafael Franco (1936-7) a oficializou;
Higino Morinigo (1940-8) a fortaleceu e Alfredo Stroessner (1954-9) a tornou
ideologia oficial de Estado, a ponto de prender e exilar aqueles que dela
divergissem. A falsificação do passado, com a apologia da ditadura lopizta,
contribuiu para construir a opressão do presente, ao dar suposta legitimidade
aos regimes desses três governantes.
Foi, porém, a partir de fins dos anos 1960 que intelectuais nacionalistas e de
esquerda do Rio da Prata promoveram Solano López a líder antiimperialista. Esse
revisionismo que, com o tempo, descambou para posturas populistas, apresenta o
Paraguai pré-guerra como um país progressista, onde o Estado teria proporcionado
a modernização do país e o bem-estar de sua população, fugindo à inserção na
economia capitalista e à subordinação à Inglaterra. Por essa explicação, Brasil
e Argentina teriam sido manipulados por interesses britânicos para aniquilar o
desenvolvimento autônomo paraguaio.
O livro mais marcante desse
revisionismo talvez seja La Guerra del Paraguay: gran negocio!, publicado em
1968 pelo respeitável historiador argentino León Pomer. No Brasil, uma
simplificação dos argumentos dessa obra resultou, em 1979, no Genocídio
americano: a Guerra do Paraguai, do escritor Julio José Chiavennato. Grande
sucesso editorial, Genocídio americano ensinou a gerações de estudantes
brasileiros que o imperialismo inglês, "destruindo o Paraguai, mantém o status
quo na América Meridional, impedindo a ascensão do seu único Estado
economicamente livre". Essa teoria conspiratória vai contra a realidade dos
fatos e não tem provas documentais; ao contrário, o leitor encontrará no
capítulo 1 deste livro fotocópia de carta do representante diplomático britânico
em Buenos Aires, Edward Thornton, dirigida ao governo paraguaio em dezembro de
1864, na qual oferece seus préstimos para evitar uma guerra entre o Paraguai e o
Brasil. Contudo, essa teoria ainda tem alguma repercussão, como nos trabalhos de
Carlos Guilherme Mota e Paulo Miceli, embora desmentida por trabalhos
resultantes de sólida pesquisa histórica, como os de Alfredo da Mota Menezes,
André Toral, Ricardo Salles e Vitor Izecksohn. No Paraguai, autores como Juan
Carlos e María Isabel Herken Krauer, Guido Rodríguez Alcalá, Ricardo Caballero
Aquino e Diego Abente também explicaram as origens da guerra a partir de fatores
regionais.
Na verdade, tanto a historiografia
conservadora como o revisionismo simplificaram as causas e o desenrolar da
Guerra do Paraguai, ao ignorar documentos e anestesiar o senso crítico. Ambos
substituíram a metodologia do trabalho histórico pelo emocionalismo fácil e pela
denúncia indignada. Para uma análise mais precisa das origens e do desenrolar da
guerra faltaram à historiografia conservadora, devido à época de seu surgimento,
conhecimento metodológico e, mesmo, documentação acessível ao pesquisador.
Dessas atenuantes, porém, não se beneficia o revisionismo, em sua vertente
antiimperialista, que tem a explicá-lo o momento histórico em que foi gerado e
se desenvolveu, nas décadas de 1960 a 1980, quando as sociedades desta parte da
América do Sul viviam sob ditaduras militares, que, apesar de castradoras das
liberdades civis, reivindicavam para si a defesa do pensamento liberal. Uma das
formas de combater essas ditaduras era desmoralizar seus referenciais
históricos, seus ídolos - na Argentina, Mitre; no Brasil, o duque de Caxias -, e
seus alicerces ideológicos. Daí o espírito acrítico com que o mundo acadêmico
aceitou e reproduziu, naquele momento, publicações "revisionistas" sobre a
Guerra do Paraguai, mistificadoras de Solano López, e que responsabilizavam o
imperialismo britânico pelo conflito. Contudo, continuar a defender, hoje, essa
interpretação somente pode ser resultado da ignorância histórica ou, então, da
natural dificuldade de se reconhecer errado.
A superação dos regimes autoritários,
os avanços do conhecimento histórico e a abertura de arquivos criaram condições
para uma análise mais objetiva da Guerra do Paraguai, para além de
simplificações ou deturpações. Com essa perspectiva, este livro, apoiado em
vasta e diversificada documentação, parte dela inédita, busca explicar as
origens da guerra e o seu desenvolvimento. Foi preocupação do autor dar às vozes
do passado, dos que viveram a guerra nos diferentes exércitos, o espaço para
serem ouvidas com respeito, quer dizer, inseridas no contexto histórico em que
foram geradas. Merecem admiração aqueles que, sejam aliados, sejam paraguaios,
se sacrificaram ao lutar por uma causa que lhes parecia justa. Mas é obrigação
do historiador, em favor do conhecimento da realidade da guerra e no exercício
de um dever ético, apontar aqueles que, em posições de mando, foram responsáveis
por tratamento cruel a subordinados e a inimigos, ou que não foram dignos do
valor e do sacrifício de seus soldados.
Por último, atualizou-se a ortografia na transcrição de trechos de documentos,
bem como se traduziram para o português as citações escritas em outros idiomas.